
Há muito tempo, quando comecei a me interessar por música, Elis Regina estava longe de figurar entre minhas cantoras favoritas. Me parecia exagerada, antipática, arrogante e com repertório ‘careta’ e ‘sério’ demais para o meu gosto na época. Além e acima disso, pouca coisa da música brasileira realmente me interessava – minha atenção estava mais voltada para as várias vertentes do rock feito por Traffic, Yes, Jethro Tull, Crosby Stills, Nash & Young, Lou Reed, Steely Dan, Bob Dylan, Eric Clapton e uma multidão de outros, não menos importantes.
Mas fui trabalhar na Warner Music e pouco tempo depois, Elis foi contratada pela gravadora. Na época, responsável pela divulgação de rádio e TV, me pediram que montasse uma agenda de programas de rádio para a cantora, prestes a lançar seu primeiro disco pela nova casa. Era um pedido surpreendente; afinal, artistas consagrados não dedicavam uma semana inteira a entrevistas ‘in loco’ em emissoras de rádio. Mas me disseram que fazia parte do contrato dela, uma dedicação especial à tarefa de divulgação mais ‘tradicional’, como se classificava, então, aquela verdadeira via crucis. E também me alertaram: “cuidado com ela; a mulher não é fácil!”.
No dia marcado para o início do périplo – uma segunda-feira, 8h30 da manhã, cheguei apreensivo pra encontrar a cantora. E a primeira impressão não foi das melhores: Elis estava de péssimo humor. Mal me apresentei, ela começou a dizer que jamais deveria ter concordado com aquela agenda, que era uma mulher muito ocupada, que morava longe, que tinha acordado às 6 da manhã, que tinha brigado com o marido, que os filhos enchiam o saco, que a empregada era uma imbecil, que o frio a deixava puta da vida, blablablabla...
Engoli em seco e lá fomos nós, no meu Fiat 147.
Surpresa: foi uma semana maravilhosa! Nos demos superbem, conversamos muito, sobre tudo e todos, demos risada a semana toda! Apesar de ser mesmo uma pessoa 'difícil', nunca tive qualquer problema com Elis. Chegamos mesmo a nos tornar amigos, por um breve período, ao ponto de mais de uma vez, tarde da noite, ela me pegar em casa com seu MP Lafer conversível, apenas para conversarmos enquanto ela ia e voltava pela Avenida Paulista de madrugada - até o Paraíso, de volta à Consolação, Paraíso de novo e assim por diante...
Dizia que nos dávamos bem porque éramos ambos de Peixes; por isso eu a entendia, já que ela era os extremos de Peixes, teorizava.
Foi nessa época que assisti pela primeira vez, um show dela: 'Essa Mulher'. Fiquei arrebatado! Repetório impecável, músicos excelentes e aquela baixinha que no palco crescia de forma impressionante.
Depois, viajei por um mês pra fora do Brasil; na volta, sabendo que Elis estrearia naquela noite seu novo show no Canecão, ao invés de descer em São Paulo, fui pro Rio. E assisti a um espetáculo maravilhoso, um verdadeiro 'banho de Brasil', um choque cultural de efeito devastador pra quem voltava de semanas fora do país. O show? 'Saudade do Brasil'.
Elis revelou músicos e compositores; era o parâmetro de artista, de cantora, de mulher, de atitude. A última vez que a vi foi no camarim de Rita Lee, em dezembro de 81 no Pal.das Convenções do Anhembi. Estava radiante, bonita, cheia de planos. Menos de um mês depois, ela se foi. E foi com ela uma parte importante de todos nós e de um Brasil que foi e que poderia ter sido... lindo.