
Há alguns dias, sucedem-se as notícias reportando a sucessiva superação de recordes na extensão de ruas e avenidas congestionadas em São Paulo – já ultrapassamos a inacreditável barreira dos 200km e o dia em que a cidade parará completamente, parece cada vez mais próximo. Hoje, na Folha de S.Paulo, dois editorialistas e um articulista convidado, além de três leitores, escrevem sobre o tema. O primeiro deles, Fernando de Barros e Silva, lembra um conto de Julio Cortazar, ‘A auto-estrada do Sul’, que inspirou o filme ‘Weekend à Francesa’, de Jean Luc Godard, e que narra um congestionamento infernal entre Fontainebleau e Paris. Os personagens passam horas, dias inteiros entalados no trânsito. “Quando, sem explicações, o nó desata, os motoristas aceleram sem que já se soubesse para que tanta pressa, por que essa correria na noite entre automóveis desconhecidos onde ninguém sabia nada sobre os outros, onde todos olhavam para a frente, exclusivamente para a frente”. Barros e Silva, entretanto, não sugere absolutamente nada para tentar resolver o problema.
Já o articulista convidado, deputado Beto Albuquerque (do PSB-RS), faz um enorme preâmbulo para depois descobrirmos que trata-se apenas de um alforrábio de auto-promoção: fala da lei proposta por ele, de fiscalização e comprovação da embriaguez do condutor. O número de acidentes automobilísticos causados pelo álcool é algo realmente absurdo e preocupante, mas o cara se vale de uma situação de urgência no trânsito para chamar a atenção para si próprio e para um problema cuja resolução, nada ajudará na melhoria do trânsito em São Paulo.
Quem dá uma bola dentro é Ruy Castro, que começa seu artigo citando Marshall McLuhan, que em 1968 disse terem as rodas se tornado a extensão do ser humano. Errou: foi o contrário que sucedeu. Como prova disso, Ruy menciona o destaque dado “pelos on-lines, jornais e TVs ao trânsito e às enchentes. Ocupam muito mais espaço do que a morte de, pelas estatísticas, 1,2 motoqueiro por dia em São Paulo. A informação de que há ‘congestionamento’ ou ‘pontos de alagamento’ em tal região é mais importante que a tragédia de um motoqueiro morto ou o estropiamento físico de outros seis ou sete. E que se remova logo o cadáver para o trânsito voltar a ‘fluir’”. Além disso, Ruy nos coloca diante de mais uma reflexão importante: “... um dos momentos do estrangulamento é que, hoje, qualquer pessoa pode comprar um carro e pagá-lo em até 72 meses. Significa que esse carro só será quitado daqui a seis anos. Mas, muito antes, já terá ficado tão velho que precisará ser trocado por outro. Sem problema: dá-se a furreca de entrada e liquida-se o resto em mais 72 meses, num endividamento que, pelo visto, só termina com a morte. Para isso nasceu o ser humano?”. O Ruy tem a sua razão, mas aí entra uma outra questão: quer dizer que agora que uma multidão das classes C e D possui facilidades de crédito, vai-se negar a eles o direito de ter o sonhado carrinho? Ou pior: culpá-los pelo congestionamento? Mas não foi essa a idéia que o capitalismo selvagem jogou na cara de todos? O status, a necessidade de ter, de comprar? E enquanto a farra estava entre os ricos, os que podiam, tudo bem... agora que a pobretada consegue uma chance, corta-se o barato? Tá errado...
Nenhum dos citados articulistas sequer comentou a necessidade de investimentos e de moralização do transporte público, ou o incentivo político (e principalmente, físico, estrutural) à utilização de bicicletas; também não se falou em estratégias que motivem a ‘carona solidária’ ou que incentivem, junto às empresas ou as próprias autarquias públicas, o trabalho em casa (com internet, isso hoje é viável e produtivo para muitas profissões). Não, nada disso. Lamentável...