segunda-feira, 7 de abril de 2008

Espaço dos Sem Blog - 5a. Edição

Pela primeira vez, o Espaço dos Sem Blog repete um colaborador. Trata-se de Gabriel Rocha Gaspar, que depois das ilustrações, agora comparece com um texto. A repetição se justifica pela oportunidade da data (os 80 anos de 'Jazz Singer') e pela qualidade, excelência e importância do texto. Enjoy!






Tristemente atual, 'Jazz Singer' completa 80 anos

“Esse moleque vai mesmo comentar um filme que tem oitenta anos, em dez parágrafos??” Putz... Vou. E vou cair em vários anacronismos... Mas vamos que vamos que o som não pode parar. “Jazz Singer” poderia não passar de um filme datado, encerrado nas possibilidades técnicas de seu tempo. Teria sido bem feito pelo simples fato de ser um dos primeiros filmes com passagens faladas de que se tem registro. Mas ele traz um elemento ideológico que bloqueia uma análise tão pragmática.
Havia um constrangimento – quando não proibição explícita – em colocar negros diante das câmeras. Aqui no Brasil, um exemplo recorrente é a “Cabana do Pai Tomás”, novela da TV Globo protagonizada pelo ator Sérgio Cardoso. O fato de Cardoso não ser negro só não era mais ridículo do que sua cara pintada de preto que, junto com a peruca de carapinha e o batom vermelho bombeiro, o transformava em uma caricatura de africano.
Na época, o autor teatral Plínio Marcos caiu de pau em cima da novela, dizendo que havia se perdido uma grande oportunidade de colocar um negro nas telas, em um papel de destaque. Para ele, Milton Gonçalves era o homem. A direção da produção argumentou que não havia sequer se preocupado com isso; que esse negócio de levar tudo para o lado racial era coisa de americano; que o Brasil não tinha disso. Gilberto Freyre já dizia...
A argumentação era, no mínimo, curiosa, já que essa história de branco com cara pintada de preto era importada – assim como a própria história do Pai Tomás – dos Estados Unidos. Por lá, black face era uma tradição que vinha desde os tempos da escravidão, dos shows de menestrel. Entre piadas, cantorias e sapateado, brincava-se com fatos corriqueiros da época, como niggers fujões, massas (senhores de escravos) enfurecidos de espingarda em riste, niggers roubando galinhas e melancias, niggers transando com seus próprios parentes, niggers falando inglês tudo errado. Enfim, era um show de entretenimento para toda a família.
Com o fim da Guerra da Secessão e a conseqüente criminalização da escravidão negra, este tipo de entretenimento tão americano ganhou força, principalmente nos estados do Sul, onde abolicionista era enforcado, sob gritos furiosos de “nigger lover”. A black face ficou estigmatizada entre os negros como uma memória deste tempo na América em que eles eram considerados ¼ de um ser humano. E isso estava na Constituição.
Nem por isso, essa máscara bizarra deixou de existir. Em “Jazz Singer”, o filho de um cantor judeu ortodoxo do Brooklyn abandona a tradição para dedicar-se ao jazz. O pai não aceita aquela música “profana” e expulsa o garoto de casa. Anos depois, ele volta a Nova York para se apresentar em um grande show de variedades na Broadway. Em uma das cenas mais marcantes, sua mãe vai ao teatro no dia do último ensaio e o flagra com a cara pintada de preto e peruca de carapinha. Diante do olhar embasbacado da velha – não basta cantar jazz, ainda tem que virar negrão!? –, o jovem toma consciência, abandona essa besteira toda de show business e vai cantar na sinagoga, realizando o sonho de seu pai moribundo.
Em 2001, Spike Lee discutiu a questão das black faces em seu filme “A hora do show”. Nele, um produtor de televisão afro-americano cria um show de menestrel para deflagrar o preconceito de seu chefe, famoso por boicotar sitcoms para a classe média negra. O tiro sai pela culatra: o programa racista é aprovado em todas as instâncias da emissora e acaba por tornar-se um sucesso, inclusive de público. Lee mostra uma sociedade americana que, entre todas as suas contradições, é saudosista da escravidão.
Quando sai do plano da ficção, a coisa fica chocante. “A hora do show” termina com uma edição de programas de TV, filmes, shows, espetáculos do século XX, ao som de um instrumental triste e lento de Stevie Wonder. É fácil identificar desenhos da Disney que passam ainda hoje na televisão, exibindo pretos como selvagens, dançando ao redor de um caldeirão onde cozinham um explorador branco. Ou filmes em que mulheres são perseguidas por black faces. Shows em que pretos aparecem em trajes de galinha. Não por acaso, uma das últimas cenas desta seqüência é o “Jazz Singer” cantando de cara pintada.
Quer dizer, Spike Lee mostra que o viés desta análise não chega a ser tão anacrônico. O tipo de racismo que se observa no filme de Alan Crosland permeou o século XX e não está recuando. A sociedade americana vive em tensão porque se divide entre vítimas e nostálgicos da escravidão. E quando pára para olhar para fora, destrincha seu racismo para além das fronteiras. Se não é o nigger, que seja o cucaracha, o terrorista árabe, o skinny somali.
Quando sobra um tempo, a saudade da escravidão volta à tona. No finzinho de 2007, seis negros de Jena, Louisiana, foram condenados por tentativa de homicídio depois de agredirem um branco. O que o branco fez para merecer as pancadas? Uma “molecagem”, segundo definição do juiz que julgou o caso: amarrou seis cordas em forma de forca em uma árvore sob a qual os negros haviam sentado na véspera. Querem cenas do próximo capítulo? Pode deixar que o Obama deve estar quebrando o coco pra tentar escrevê-las. Quem sabe ele não dá um sentido positivo à expressão black face?




19 comentários:

GUGA ALAYON disse...

ótimo texto. Me lembrou também as aventuras de Tintin e as 'nazistadas' preconceituosas do Hergé.
demorôôôôô!
abç

Neil Son disse...

bem lembrado, guga! mas segundo o jayme, o hergé se 'regenerou' no final da vida. será?

anna disse...

gabriel, putaqueospa! que texto!

deu o maior status prá comunidade dos sem blog!

Anônimo disse...

Neil
Você é um que pode tranquilamente dizer : " Esse é o meu garoto !"

Neil Son disse...

anna e peri: tô pensando em tornar o gabriel um 'frila fixo' aqui do blog, o que acham?

Anônimo disse...

Neil
Boa, crie um espaço para ele, tipo "beira de blog", eh, eh

Anônimo disse...

muito bom, muito pertinente, forte e com humor, e inteligência e sensibilidade e nos lembra da miséria que o preconceito trás pra humanidade por séculos e séculos e séculos!!! pat gas.

Neil Son disse...

vou falar com ele, peri. mas o cara anda muito ocupado, não sei se vai dar...

Neil Son disse...

é pat, o que também me agradou nesse texto é que ele tá maduro - soube equilibrar a natural e compreensível raiva pós-adolescente com doses de humor e informação.

Anônimo disse...

Ô! Raiva adolescente a gente até entende; raiva pós-adolescente é patologia! Então... Adoraria fazer esse frila fixo bom samaritano, mas vai ter que ser naquelas de "devo, não nego e pago quando puder". Se eu tivesse com tempo, faria meu próprio blog pra poder ir tomar chopp no balcão! Abs, Gabriel.

GUGA ALAYON disse...

duvido, Neil. Não existe ex-nazista e nem ex-blogueiro.

Neil Son disse...

hahaha, gabriel! não precisa ter o seu próprio blog pra ir no balcão. vc é meu convidado, FOREVER!

Neil Son disse...

nem ex-viado, guga! hahaha!

jayme disse...

"O teu cabelo n�o nega, mulata// Porque �s mulata na cor// Mas como a cor n�o pega, mulata, // mulata �s o meu amor." O tratamento dado aos negros realmente teve momentos de horror mundo branco afora. O Herg� n�o sei se intimamente ou para a torcida, mostra uma revis�o de um racismo horroroso, cujo �pice est� em "Tintin au Congo" ("Tintim na �frica", por aqui). Nos �lbuns "Le Lotus Bleu" ("O Loto Azul" ) e "Coke en Stock" ("Perdidos no Mar"), Herg� toma posi�es diferentes, chegando a ridicularizar os ocidentais em conflito com os de outras ra�as (os detetives Dupont e Dupond, no primeiro, e o estreante Capit�o Haddock, no segundo). Neste �ltimo, ele aborda um tema pol�mico e "adulto", que � o tr�fico de escravos (ou l�mpens) em pleno s�culo 20. Herg� era belga, donde � de se duvidar que tenha escapado completamente de um certo pendor � la droite (olha� o preconceito do escriba aqui). Mas que se moveu, se moveu.

Patty Diphusa disse...

Ótimo, mandou bem, gabriel. o ruim de chegar depois é que já falaram tudo, mas é isso, equilibrado, bem humorado, ah, e sem a raiva adolescente, rs. Espero que vc se anime com seu próprio blog ou com seu papel de frila fixo aqui. Parabéns.

Neil, aprendeu a colocar vídeo aqui? bom.

bjs para os dois.

Neil Son disse...

hehe patty, foi o gabriel que me ensinou...

GUGA ALAYON disse...

jaymão, como sempre, altamente e definitivamente esclarecedor. Valeu!
abç

Anônimo disse...

Uau! Muito bom o texto.
Penso que deve ser bem difícil viver nos EUA. Mas, se sociedade americana se divide entre vítimas e nostálgicos da escravidão, como explicar a grande popularidade e o eleitorado de Obama? Lá, ao contrário daqui, as vítimas são minoria...
Mudanças de paradigmas, novos tempos! Finalmente.

Neil Son disse...

we hope so, marina, we hope so...