
Musa absoluta do genial Ingmar Bergman, Liv Ullmann esteve em São Paulo para abrir uma mostra da Cinemateca Brasileira em sua homenagem. Sempre me fascinou a beleza escandinava, misteriosa, de Liv em atuações sutis e expressionistas - onde os olhares e silêncios dizem mais do que as palavras - nos filmes 'Gritos e Sussurros', 'A Paixão de Anna', 'Persona' e 'Cenas de um Casamento', para citar só alguns. E Liv soube envelhecer linda, com extrema dignidade, como se comprova na matéria abaixo, feita pelo Gabriel (meu filho) a partir da coletiva que a atriz concedeu à imprensa paulista, semana passada. A matéria foi originalmente publicada no Portal Onne (http://onne.com.br/conteudo/6129/dois-segundos-al-m-do-poss-vel).
Dois segundos além do possívelpor Gabriel Rocha Gaspar________________________________________
Na coletiva de imprensa, ninguém queria perguntar a Liv Ullmann sobre Ingmar Bergman. A atriz/diretora/escritora teve sua trajetória estreitamente ligada à do gênio sueco com quem, além de ter feito alguns dos mais importantes filmes do Século XX – “Persona” (1966), “A Paixão de Anna” (1969) e “Cenas de Um Casamento”(1973), entre outros –, teve uma filha. Jornalistas hesitavam porque se supõe que Liv deve estar mais do que cansada de responder sobre seu ex-companheiro, amigo e ídolo. E, principalmente, porque ela vem ao Brasil para falar dela própria.
É que Liv é homenageada na Cinemateca com a mostra “Liv Ullmann – A Atriz, A Diretora e Seus Filmes” e com a primeira versão em português de seu livro autobiográfico “Mutações”, de 1975. Sorte deste repórter do ONNE que, sendo o primeiro a citar o diretor, foi o único a suscitar olhos marejados, acompanhados de um sorriso encantador. “Há dois anos (pouco antes da morte de Bergman, em junho de 2007), conversamos ao telefone e eu disse: ‘é tão incrível. Todo mundo com quem eu falo me diz tantas coisas lindas, só porque eu trabalhei com você,” ela contou. A belíssima resposta: “A gente compartilha o mérito. Você é o meu Stradivarius (violino mais precioso do mundo)”.
Essa foi uma entre muitas falas apaixonadas. Na verdade, suas primeiras palavras já foram uma declaração de amor (às avessas, há de se dizer). O cônsul geral da Noruega, Jens Olesen, abriu a conversa apresentando o programa da mostra, que inclui coquetéis com bebidas e comidas típicas daquele país – leia-se akvavit e bacalhau. “Nós adoramos”, ele disse, “que os brasileiros adoram e que Liv Ullmann adora”. Ela tratou de dizer, rapidamente: “Eu não gosto!”. Rendeu gargalhadas e a simpatia dos entrevistadores.
Foto: Rodrigo Schmidt)Seguiu-se a essa, nova paixão. Dessa vez, pela... Velhice?! Dos dois lados de Liv, cartazes mostravam uma foto sua, “datada de 38 anos atrás”, segundo ela própria. “Não gostei porque essa menina não sou eu; nem me lembro de algum dia ter usado esse chapéu!”. Aos 69 anos, essa menina se diz orgulhosa da idade. “Hoje em dia, parece que é vergonhoso ficar velho. A experiência nos permite encontrar novos caminhos para onde seguir”.
Com toda essa disposição intelectual, não é de se admirar que Liv critique um certo cinema atual, que induz o espectador à preguiça. “Para mim, algumas das melhores experiências da vida aconteceram dentro de uma sala escura de cinema”. Quando criança, na Noruega, ela vivia em um ambiente muito protegido, cercada de família, amigos e vizinhos próximos. “Umberto D”, “Ladrões de Bicicleta” e “Milagre em Milão”, filmes do italiano Vittorio de Sica, foram a chave de um vasto universo além-muros.
Foram os primeiros passos de uma carreira que moldou o cinema no Século XX. Com meros 17 anos, Liv Ullmann estreou nas telas na comédia “Fjols til Fjells” (Tolos na Montanha, em tradução livre), de Edith Carlmar. Dois anos depois, em 1959, protagonizou “Ung Flukt” (A Garota volúvel – também de Carlmar). Antes dos 20, era uma celebridade local. “Ser famosa em um pequeno lugar é o mesmo que ser famosa no mundo inteiro. Significa ser duas pessoas: alguém que todos conhecem e alguém que é normal, que ninguém conhece. Essa segunda pessoa foi quem escreveu livros”.
Por isso, Liv se diverte com o fato de ter se tornado um ícone da libertação da mulher com “Mutações”. Diz que nem sabia que era feminista. Na verdade, ela vê todos como iguais e até tira sarro da alcunha. Conta que, quando fez Casa das Bonecas na Broadway (1975), chegou a encarar uma face furiosa do feminismo nova-iorquino. Na peça, Liv vivia Nora, uma mulher que larga o marido em nome da liberdade. “Quando eu subi no palco, na pré-estréia, as mulheres vibraram. Quando o pobre coitado que fazia meu marido (Sam Waterston) abria a boca, choviam vaias”. Waterston começou a ficar nervoso antes da apresentação e Liv recomendou ioga ao companheiro. Resultado: ele torceu o pé e teve de usar uma bengala na estréia. Acabou dando certo. O público ficou com pena dele e as comemorações pelo pé-na-bunda diminuíram. “Durante o resto da temporada, meu marido usou muletas.”
Ingmar Bergman “Ele se sentava ao lado da câmera, escutava e olhava tudo. Era como um amante de fato, alguém que presta atenção a cada mínimo detalhe do que você faz. Para o apaixonado, você faz o seu melhor: você sorri melhor, chora melhor, você é mais para sua interpretação”, conta Liv. Quando foi filmar Sarabanda (2003), Bergman estava longe dos sets havia quinze anos. Novos métodos de filmagem, “aos quais Ingmar não estava acostumado nem se acostumaria” impediam que ele ficasse colado à câmera como sempre fez. “Perdi aquele espectador privilegiado, fiquei perdida.” Quando ele disse ação, o que aconteceu? “Tudo foi muito bem. Nos comunicamos por sinal de fumaça.”
Não foi à toa que naquela conversa, uma das últimas, Bergman disse que Liv Ullmann era seu Stradivarius. Dessa relação entre o maestro e sua maior solista nascia a arte. Nas palavras dela própria, o grande artista é alguém que puxa um pouquinho o limite da verdade. “É como aquela bailarina que salta e consegue ficar dois segundos além do possível no ar”.