
É a mais bem sucedida artista da música brasileira de qualidade, nas últimas décadas. E muito interessante: a trajetória de Marisa Monte revela, indiretamente, muito da fragilidade, da preguiça e da indigência cultural daquela parte da população brasileira que se julga a mais ‘antenada’, a mais ‘inteligente’ e a mais ‘formadora de opinião’. Ou seja, nós mesmos. Eu, você que me lê, nossos amigos próximos e nossos conhecidos distantes mas nem tanto. Explico porque, mais adiante.

De família da classe média-alta carioca, Marisa passou a infância e a adolescência alternando o estudo de música clássica com a convivência entre os sambistas da Portela, uma das paixões de seu pai. Aos 16 anos, circulava pelas lojas ‘descoladas’de Ipanema e do Leblon, vendendo as bijuterias que ela mesma produzia. Aos 19, Marisa foi pra Roma estudar belcanto; aguentou apenas dez meses do curso e passou a cantar música brasileira em bares da capital italiana; num desses shows, foi assistida por Nelson Motta e a ‘roda começou a girar’...

A incrível capacidade para ‘estar no lugar certo na hora certa’, a esperteza e a excelente rede de contatos de Nelsinho... era tudo o que Marisa Monte precisava. De volta ao Rio, com produção impecável e um eficiente boca-a-boca, Marisa Monte se transformou em ‘cult’ – seus shows em locais como o Mistura Fina eram disputados a tapa. Sucesso de público e crítica, antes de lançar qualquer coisa – algo muito difícil naquela era do vinil, pré-Internet. O primeiro LP saiu em 1988, gravado ao vivo e registrado em película por ninguém menos que Walter Salles Jr. ‘Bem se Quis’(versão de Nelson Motta para um hit romântico da música italiana) estourou no país todo e Marisa Monte virou a estrela do momento. A partir daí, aquele público ‘cult’ já começou a torcer o nariz... Eles odeiam o sucesso, detestam ter que ‘dividir’ seus queridinhos com a massa ignara...
No disco seguinte, ‘Mais’(1991), Marisa mostrou que era capaz de fazer um grande disco, ‘liberta’ de Nelson Motta. Foi nessa época, trabalhando para o Jornal da Tarde, que tive oportunidade de conhecê-la. Viajei para o Rio e entrevistei Marisa, por cerca de duas horas, nos estúdios da EMI-Odeon. Saí impressionado com a clareza de objetivos, com a sinceridade do seu talento, com a simpatia natural da moça. No táxi de volta ao aeroporto, me ocorreu que Elis Regina já poderia descansar em paz: surgia ali uma sucessora... uma cantora brasileira que reunia, finalmente, talento artístico, competência profissional e inteligência.
Acho que estava certo: a partir de então, sem deslumbrar-se com o sucesso ou perder o fio da meada, e amparada pela eficiência comercial do empresário Leonardo Netto (que foi meu chefe na Warner), Marisa começou a construir uma sólida carreira internacional e a manter uma distância segura da ‘mídia de celebridades’(argh), evitando a super-exposição, dosando com maestria suas aparições na mídia e em turnês - cada vez melhor produzidas, ao lado de músicos sempre competentes e cercando-se de concepções inovadoras de luz e cenário. O disco seguinte, ‘Verde, Anil, Amarelo, Cor-de-rosa e Carvão’ (1994), mostrava consistência e alta qualidade de repertório e interpretação, juntando Laurie Anderson e Paulinho da Viola em incrível uniformidade. Depois, ‘Barulhinho Bom’ (1996), disco e turnê, mostraram uma Marisa Monte que se reciclava, mostrando-se cada vez mais segura como compositora e bebendo da saudável fonte hippie-bagaceira dos Novos Baianos. Foi mais um acerto, e que ainda contou com a ousada capa com desenhos do nosso icônico (opa!) Carlos Zéfiro; a capa, aliás, foi proibida nos Estados Unidos, hehehe...

Diversificando sua área de atuação, Marisa Monte fundou seu próprio selo, Phonomotor, e desenvolveu trabalho belíssimo, comovente mesmo, com a Velha Guarda da Portela. Participou de shows ao lado dos ‘velhinhos’ e produziu o excelente ‘Tudo Azul’ (2000), CD que foi um presente para muitos deles - que ali realizaram a sua primeira e última gravação. Esse trabalho de Marisa ainda resultou no recém-lançado documentário ‘O Mistério do Samba’, dirigido por Lula Buarque de Holanda e Carolina Jabor e pré-selecionado para o Festival de Cannes. Em 2000, Marisa lançou o CD ‘Memórias, Crônicas e Declarações de Amor’, de nível um pouco inferior aos anteriores, mas certamente não-merecedor do buraco negro em que foi jogado pela tal suposta ‘minoria pensante’ – apesar (ou por causa) do grande sucesso de público. Logo depois, em 2002, Marisa produziu ‘Omelete Man’, excelente CD do caótico e brilhante Carlinhos Brown. E foi ao lado dele e de Arnaldo Antunes que Marisa lançou, no final daquele ano, o CD e DVD ‘Tribalistas’, sucesso absoluto que marcou o rompimento definitivo da tal ‘intelligentsia’ com a artista. Pois é, a partir do ‘Tribalistas’, virou moda falar mal de Marisa Monte – os cadernos dito culturais, o público ‘moderninho’ e os círculos mais ‘cultos’ transferiram para ela as suas frustrações e complexos. Marisa Monte virou a Geni da vez... impressionante. Agora, vou dizer: ‘Tribalistas’, o CD, e principalmente, o DVD, são excelentes. É um trabalho delicado e dedicado, riquíssimo em detalhes e em soluções sonoras inusitadas e criativas – a junção das vozes de Marisa, Brown e Arnaldo funciona à perfeição; e me fez até gostar um pouco do Arnaldo, vejam só...
Após quatro anos de sumiço quase total (a inteligência da auto-preservação...), Marisa Monte reapareceu em 2006, não com um, mas com dois CDs de músicas inéditas – ambos muito bons, ambos surpreendentes: ‘Infinito Particular’ e ‘Universo ao Meu Redor’. A longa turnê de lançamento, que rodou o mundo até há pouco tempo, quando a cantora entrou em mais uma fase de ‘retiro’, mostrou, além da cantora e da compositora, a Marisa Monte instrumentista, revezando-se pelo violão, guitarra, cavaquinho e até trumpete. Trazia ainda, uma interessante formação musical, juntando no palco violões, cello, violino, fagote, trumpete e percussão de samba – e tudo emoldurado por uma solução de luz e cenário que está entre as mais simples e criativas que já vi. É pouco ou quer mais?

Então aí vai: com seu nariz pronunciado, sua estatura exagerada (que acaba gerando uma postura meio ‘curvada’), suas mãos e pés grandes demais, sua tendência à ‘monocelha’, Marisa Monte está longe de se encaixar nos padrões de beleza. Sinceramente? Marisa Monte é feia. Mas é linda. Marisa Monte? Totalmente musa!